Uma das coisas mais lindas do mundo é um velho enxerido.
O enxerimento como uma safadeza que nos mantém crentes na existência.
O enxerimento cortês, o flerte quase inocente, a loa dita para a cabocla que passa, o verso rimado, o mote para a negra, para a mestiça, para a morena, o pé-quebrado para a branquinha cheirando a leite, o acróstico para todas, maneira de esticar a vida, como no enxerimento do meu avô João Patriolino, que deixava vó Meranda, índia de Águas Belas, enrubescida.
O enxerimento lírico de Abelardo da Hora, que grande homem, quase Deus a tirar do barro outras costelas, e que amor à sua própria dama, que magrinho com amor de sobra, que olho aceso feito brasa, que chama, como na sua canção predileta de Capiba, com letra de outro velho enxerido, o farto Ascenso Ferreira.
Andava com certo fastio do mundo quando vi da Hora na tevê, num programa da Globonews, merecida homenagem a um dos nossos maiores escultores, da Hora, 82 anos, mas com uma fome de viver da gota, da Hora com um olhar apaixonado para as mulheres, todas que apareçam à sua frente, da Hora cantando lindamente a repórter, da Hora com olhos marejados por uma existência de solidariedade aos lascados e devoção às fêmeas do universo.
E a vontade de fazer novas coisas desse homem? Meu Deus, dê-lhe uns dois séculos e meio de vida, ele merece, e quando chegar aos 250, meu Deus, dê mais um chorinho, repare como ele é comovente, repare como ele amassa as costelas do barro, repare como ele parece Deus fazendo mulheres.
O enxerimento é a gasolina azul dos mais velhos, prorroga os dias, renova as folhas das folhas do calendário.
Um velho enxerido sente de longe quando se aproxima uma mulher bonita, fica logo aceso, bate as asas, tem a liberdade do cachorro e o tesão do galo.
Toda liberdade do mundo para um velho enxerido. Um velho enxerido tem a beleza de um louco, passagem livre, pode tudo.
Um velho enxerido reinventa a mulher, como se a esculpisse naquele instante, não há feiúra para um velho enxerido, tudo é beleza para este homem.
Lembro de minha vó Meranda, de Merandolina, Merandolina Freire de Lima, minha vó índia, minha vó com a mão na boca, envergonhada, cerimoniosa, diante das loas de seu João, que não deixava uma mulher passar em paz na frente de casa.
Ele ouvia os passos da nega e já começava o repente, "vôte, João, tu não tem jeito mesmo", dizia baixinho Meranda, até as moças ficavam sem graça, mas que gostavam, gostavam. Algumas delas passavam não sei quantas vezes no terreiro e, lembro-me bem, como ficavam tristes quando não mereciam a renovada oração diária, a loa, o capricho, o decassílabo invocado.
Minha vó ficava passada, ruborizava mais ainda quando o velho enxerido se voltava para ela, reza de todas as tardes, e dedicava-lhe versos inéditos, mesmo depois de 50 anos de convivência.
Vôte, João, tu não tem jeito mesmo!
Fazer o quê, Meranda, se o meu amor é novinho em folha?, rebatia ele, arrodeado de cachorros e galos no quintal de casa.
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